As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul, as mais intensas registradas em território gaúcho em décadas, já deixaram dezenas de mortos, causaram estragos em 300 municípios, romperam uma barragem e desalojaram mais de 32 mil pessoas. Há ainda mais de 60 pessoas desaparecidas enquanto o mau tempo já provoca danos em outros Estados do Sul.
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Os governos federal e estadual criaram uma força-tarefa e tentam evitar mais mortes promovendo evacuações e retirando pessoas de áreas de risco.
Mas a responsabilidade não é apenas dos governos estaduais e federal, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), mas também do Congresso — pois as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos, na opinião dele.
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“A maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar”, afirma o especialista em políticas públicas à frente do Observatório do Clima, rede de entidades que monitora a questão climática no Brasil.
Além disso, segundo Astrini, ações que se limitam às respostas de emergência em situações de crise não são suficientes. Eventos extremos como esse — cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas — não podem mais ser tratados como “imprevistos”.
Embora nem sempre seja possível prever com precisão a intensidade de um evento extremo, já sabemos que eles se tornarão mais frequentes — e quais as medidas que precisam ser tomadas para nos adaptarmos a eles, afirma o especialista.
Modelos climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América do Sul, incluindo toda a bacia do Prata (formada pelos rios Paraná e Uruguai), lembra Astrini.
“O maior problema que a gente enfrenta neste momento não é a previsão, é a aceitação”, afirma Astrini. “A gente precisa aceitar que, infelizmente, esse é o novo normal. Mas não basta aceitar pacificamente, é preciso aceitar e tomar atitudes.”
“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro fica super surpreso quando acontece em Petrópolis. É uma surpresa em São Sebastião (SP), no norte de Minas Gerais, em Recife (PE), no sul da Bahia. Só que acontece que já faz nove anos consecutivos que as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para isso”, afirma Astrini.
Mitigação, adaptação e redução de danos
Astrini explica que existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática: a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a redução de danos diante das tragédias.
“Mitigação é quando você ataca o problema: é quando você interrompe o desmatamento, quando você tira uma termoelétrica de operação, quando substitui uma fonte poluente por uma fonte renovável”, afirma o especialista.
“A adaptação é quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar principalmente as populações mais vulneráveis ao problema. Por exemplo, quando tira as populações da área de risco, quando dá mais assistência para um pequeno agricultor lidar com uma seca.”
As ações também são necessárias contra problemas que não necessariamente são causados pelo aquecimento global, embora agravados por ele, explica Astrini.
“Adaptação é também quando você reforça a rede de saúde, porque vão aumentar os casos de dengue, porque o ciclo de reprodução do mosquito vai ficar mais longo por causa de chuvas desproporcionais e do calor prolongado.”
Já lidar com as perdas e reduzir os danos é promover as respostas emergenciais às tragédias.
“Perdas e danos é o que se faz normalmente: desbarrancou, você vai procurar sobreviventes, vai construir casas”, diz Astrini. O problema, na visão do especialista, é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e municípais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta.
“O pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Astrini.
“O dinheiro investido na primeira camada vale muito mais, porque ele evita a adaptação e evita o desastre.”
Ações que estão sendo tomadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual e pelos municípios no caso das chuvas no Rio Grande do Sul — alertas da Defesa Civil, evacuação de pessoas de áreas de emergência, restabelecimento de serviços etc — se encaixam no terceiro tipo.
Após a região ser atingida por um ciclone em setembro do ano passado, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional repassou R$ 82 milhões para o governo do Estado e outros R$ 243 milhões aos municípios gaúchos para lidar com a crise. Segundo reportagem da CNN Brasil, a maior parte do dinheiro foi usada em ações emergenciais, como compra de mantimentos e desobstrução de estradas.
“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.
Embora o aquecimento global seja um problema em escala mundial, ações de mitigação não são responsabilidade apenas de entidades internacionais e governos nacionais. Elas podem — e precisam — ser alvo também dos governos locais, diz Astrini.
“A mitigação é uma agenda de responsabilidade, não de ganho político. Vou pegar um exemplo aqui no Cerrado, que bateu o recorde de desmatamento nesse último período: mais de 60% de aumento de agosto do ano passado para cá. E quem dá as autorizações de desmatamento são os governos estaduais”, diz ele.
“E há vários outros exemplos, como legislações de licenciamento ambiental mais frouxas nos Estados, a responsabilidade com o saneamento básico, com a transição energética.”
O governo do Rio Grande do Sul não respondeu ao pedido de informações sobre ações de mitigação e adaptação da BBC News Brasil. O governador Eduardo Leite (PSDB) tem dado atualizações diárias sobre as medidas emergenciais tomadas no Estado, que incluem alertas e remoção das pessoas das áreas de risco.
‘Deputados e senadores também são responsáveis’
Astrini diz ainda que é preciso lembrar da responsabilidade do Congresso em relação à situação climática que leva à tragédias como a sofrida pelo RS neste momento.
“Deputados trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com afinco. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, querem acabar com a reserva legal na Amazônia, querem acabar com as reservas indígenas”, diz Astrini.
Ele se refere a um um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo que Estados e Municípios determinem os projetos que precisam ou não fazer uma análise de impacto, entre outras medidas.
Os defensores do PL argumentam que ele “diminuirá a burocracia” e por isso facilitaria o desenvolvimento econômico.
Mas Astrini diz que o projeto não só não resolve o problema da burocracia como pode comprometer metas de desenvolvimento sustentável.
“A gente nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação ambiental no Brasil”, afirma.
Deputados e senadores contrários a pautas importantes para ambientalistas argumentam que a legislação ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico e, em alguns casos, negam dados científicos sobre o aquecimento global ou sobre desmatamento no Brasil.
“Tem dois momentos em que o Congresso ajuda o Brasil na área ambiental: no recesso do meio do ano e no recesso do final”, diz Astrini.
Para Astrini, o governo federal vem falhando na disputa com os deputados e senadores pelas pautas ambientais, embora tenha um bom projeto para a área.
Ele cita, por exemplo, o fato de a bancada governista ter sido liberada para votar em qualquer sentido (em vez de receber a orientação para votar contra) o marco temporal para as terras indígenas.
“A gente nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas… Mas mesmo assim as coisas não estão andando como deveriam”, afirma.
Além na tragédia no Sul, há outras notícias negativas na área. O Norte registra número recorde de queimadas de janeiro a maio deste enquanto a greve de servidores dos dois principais órgãos de fiscalização ambiental do país —Ibama e ICMBio— já dura mais de 100 dias.
Para o especialista, não se trata apenas de uma questão de orçamento mais robusto para ministérios da área —que também é importante — mas da capacidade de integrar essa visão em todos os setores.
“Quem causa o problema de emissões do Brasil? São os atores no setor do Ministério da Agricultura. E no Ministério das Minas e Energia. São esses ministérios que têm que ter programas e investimentos para diminuir as emissões de seus setores”, afirma Astrini. “O Ministério do Ambiente pode multar uma área que já foi desmatada, mas para as ações de mitigação você precisa da ação de todos os agentes.”
A BBC procurou o governo federal para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
O governo, que apesar de não ter maioria no Congresso conseguiu aprovar agendas suas como o novo arcabouço fiscal, não tem “comprado a briga” nas pautas ambientais, opina Astrini.
No caso do marco temporal para as terras indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou barrar a aprovação da lei que limita a demarcação, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso.
A tese do marco temporal é de que apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988, momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.
Movimentos indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores. Já os ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava insegurança jurídica.
Além de um direito dos povos originários, a demarcação de terras indígenas é considerada por ambientalistas e pesquisadores uma das principais formas de preservação da mata nativa brasileira — hoje as reservas impedem o desmatamento de diversas áreas cujo entorno foi devastado.
Astrini também critica o fato de pautas ambientais terem entrado no cabo de guerra entre o Supremo e o Legislativo, virando parte de uma disputa de poder mais do que uma discussão sobre políticas públicas.
O Senado e Câmara têm entrado em rota de colisão com o STF em diversos temas, em uma disputa sobre os limites de cada poder.
A questão do marco temporal, inclusive, só teve a sua votação acelerada como resposta da bancada ruralista a uma decisão do STF de 2023.
Na época, a Corte rejeitou a tese do marco, que era baseada em uma situação jurídica ambígua. Logo em seguida o Congresso aprovou uma nova legislação determinando a existência de um marco temporal.
“Em algumas áreas, como essa do marco temporal, o Congresso tem usado a questão para atacar os indígenas e o Supremo.”
Além das decisões recentes tomadas pela maioria conservadora do Congresso e de projetos em tramitação, Astrini critica a postura pública de deputados e senadores em relação a temas ambientais.
“São os homens privilegiados, com espaço, que falam com seus eleitores e formam opinião pública. Eles não cansam de repetir que essa coisa de meio ambiente, de regra ambiental, é uma besteira”, diz Astrini. “Mas aí as consequências chegam e a responsabilidade é de quem?”
Para o secretário-executico do OC, esses parlamentares “incentivam quem quer desrespeitar a leis ambientais e prejudicam quem quer fazer certo”. “Então eles têm enorme responsabilidade por situações como essa (no Rio Grande do Sul) e têm que ser cobrados por isso.”
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Governo do Rio Grande do Sul engavetou planos para lidar com mudanças climáticas
Nos primeiros cinco dias de setembro, choveu no Rio Grande do Sul o dobro do que costuma chover em todo o mês no Estado. O rio Taquari subiu muito rapidamente na sua cabeceira, propagando uma onda de cheia ao longo da bacia. As inundações que se seguiram levaram à morte de 50 pessoas. Em apenas três meses, esse foi o quarto ciclone extratropical a atingir a região – umas das mais sensíveis do Brasil às mudanças climáticas, pioradas, neste ano, pela incidência de um forte El Niño. Em junho, outras 16 pessoas já haviam morrido em evento similar no litoral norte do estado.
Após dias de chuvas sem trégua, o rio Guaíba, que corta a capital Porto Alegre, ultrapassou nesta quarta-feira (27) a cota de inundação, de 3 metros, tomando a orla e desalojando moradores das ilhas que cercam a cidade. Apesar de assustadores, os acontecimentos não são imprevistos. Não faltaram alertas científicos – e não apenas para esses casos especificamente – de que a situação tende a se agravar cada vez mais e que é preciso agir para preparar o estado contra mais tragédias.
O Rio Grande do Sul vem sofrendo nos últimos anos com eventos extremos que se alternam – de chuvas intensas a secas severas –, mas o governo de Eduardo Leite (PSDB) não tem oferecido uma resposta à altura das ameaças e ainda não foi capaz de colocar em prática medidas de prevenção e ordenamento territorial que poderiam ter minimizado os danos humanos, físicos e econômicos dos desastres.
É o que apontam especialistas tanto em políticas públicas quanto em clima ouvidos pela Agência Pública que acompanham de perto a situação. A avaliação deles é que o governo do Estado vem investindo pouco em prevenção e monitoramento ambiental para redução de impactos de eventos extremos piorados pelo aquecimento global. O estado chegou a encomendar um Plano de Prevenção de Desastres, finalizado em 2017, mas que nunca saiu do papel.
De acordo com dados do Adapta Brasil, plataforma do Ministério da Ciência e Tecnologia que avalia os riscos dos municípios brasileiros às mudanças climáticas e orienta a tomada de decisões, o estado é bastante vulnerável: 41% das cidades do Rio Grande do Sul têm capacidade adaptativa – ou seja, de se ajustar e responder a possíveis desastres geo-hidrológicos de inundações, enxurradas e alagamentos – baixa ou muito baixa.
Dos 497 municípios do Estado, 206 estão nessa situação. É o caso de Roca Sales, uma das mais afetadas pelas inundações no Vale do Taquari no início do mês. Outros 203 têm capacidade média, como Muçum, onde morreu a maioria das pessoas.
“O governo age depois das tragédias, mas antes delas acontecerem o que temos visto é uma falta de organização”, afirma o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL). Ele analisou os orçamentos para a Defesa Civil nos últimos anos e fez um pedido de informações da gestão sobre os gastos logo após a passagem do ciclone de junho.
Para 2023, por exemplo, a previsão orçamentária para o aparelhamento da Defesa Civil foi de apenas R$ 100 mil reais. Tinha sido de R$ 1 milhão em 2022. Já o valor previsto para Gestão de Projetos e Respostas a Desastres Naturais passou de R$ 6,4 milhões no orçamento de 2022 para R$ 5 milhões em 2023.
Em 23 de agosto, o governo respondeu ao pedido do deputado: “Do exercício de 2022 até o presente, foram executados R$ 1.043.777,53 para a manutenção de estoque e distribuição de ajuda humanitária, como cestas básicas, kits de higiene e limpeza, lonas, telhas de fibrocimento, transportadores flexíveis de água, dentre outros materiais que dão suporte às populações em situação de vulnerabilidade decorrente de riscos e desastres. No reaparelhamento da Defesa Civil Estadual foram investidos R$ 3.933.450,90”.
À Pública, Gomes argumentou que a resposta do governo indica que falta planejamento para o problema. “O governo investe dinheiro em ajuda humanitária, à medida que as tragédias ambientais acontecem. No aparelhamento, o valor previsto era muito menor e tiveram de investir uma cifra bem superior, o que demonstra que a previsão orçamentária que o governo estipulou não era condizente com a real situação da estrutura da Defesa Civil. Os fatos foram acontecendo, o governo foi aumentando. Ou seja, é uma ação que é na verdade uma reação”, disse o deputado.
“Não há uma cultura de prevenção no Rio Grande do Sul e esse é o debate que nós estamos fazendo novamente agora”, complementou, em referência às discussões em torno do plano plurianual que traz previsões de investimentos de 2024 a 2027. A rubrica “gestão integrada em proteção e defesa civil”, que vai reunir todos os gastos do setor, prevê o investimento de R$ 8,8 milhões – ou pouco mais de R$ 2 milhões por ano .
“É um recurso muito inferior à necessidade”, continua Gomes. “Não demonstra uma seriedade ao pensar a prevenção a desastres e a dotação orçamentária para isso.”
Questionada pela reportagem, a Secretaria de Comunicação do governo do Estado afirmou que, neste ano, os investimentos “com impacto na política de combate aos efeitos de eventos climáticos extremo” foram de R$ 17,7 milhões, contra R$ 5,6 milhões no ano passado.
Mas a lista de gastos listados envolve, além da “gestão de risco com os serviços de operação da Sala de Situação e manutenção da rede hidrometeorológica” – também citadas em 2022 –, custos com ações não diretamente ligadas à resposta e prevenção, como um edital de “pesquisa em emissão de gases de efeito estufa” e “início da tramitação do Plano de Transição Energética Justa”.
Gomes é autor de um projeto de lei que propõe que o Rio Grande do Sul reconheça o estado de emergência climática como elemento que balize o conjunto de políticas públicas. O tema foi debatido no último dia 18 em uma audiência pública organizada pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa. Chamou a atenção dos quase 500 participantes que o governo não mandou nenhum representante ao debate.
A ausência, piorou uma imagem já abalada do governador Eduardo Leite no enfrentamento da crise climática. Em 6 de setembro, um dia depois que um ciclone extratropical praticamente varreu do mapa as cidades de Muçum e Roca Sales, Leite disse em entrevista à GloboNews que não sabia o volume de chuva que iria cair.
“Os modelos matemáticos previram as chuvas, em intensidade, mas não previram o volume de cerca de 300 milímetros nas diversas bacias hidrográficas da zona Norte do estado, da Região Noroeste, da Região Serrana, do Vale do Taquari – este que foi mais afetado”, afirmou Leite. Logo na sequência, foi desmentido pelos serviços meteorológicos.
O Metsul, empresa de meteorologia privada, emitiu uma nota dizendo que em 31 de agosto, cinco dias antes da catástrofe, havia publicado um alerta de que o mês de setembro começaria com “chuva extrema, onda de tempestades e enchentes”. No mesmo alerta já havia uma projeção de que poderia chover mais de 300 mm.
A nota publicada em resposta ao governador aponta ainda que no dia seguinte houve outro alerta de que a chuva teria “volumes excepcionais de até 300 mm a 500 mm”, com o aviso: “o cenário de precipitação para estes primeiros dez dias de setembro não tem precedentes nos últimos anos”.
Alguns dias depois da entrevista do governador, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, também apresentou uma nota técnica afirmando que “identificou e alertou a situação que derivou no desastre ocorrido no estado do Rio Grande do Sul com cinco dias de antecedência”.
A informação foi repassada no dia 30 de agosto ao Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres, do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, que convocou reuniões com as Defesas Civis de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul.
Professores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apontaram que houve ainda um outro sinal que poderia ter sido usado para evacuar a população em Lajeado – outro local destruído pela inundação do Rio Taquari durante o evento extremo do início de setembro.
Em várias cidades do vale, famílias buscaram abrigo nos telhados das casas quando a água do Rio Taquari começou a subir. Em Lajeado, uma em particular comoveu os pesquisadores pelo desfecho trágico. Mãe e duas crianças de colo acabaram morrendo quando a casa foi levada pela água. Eles sugerem que isso talvez pudesse não ter ocorrido. Cerca de 24 horas antes da tragédia, uma ponte de ferro sobre o Rio das Antas, localizada entre Farroupilha e Nova Roma do Sul, a 170 km acima de Lajeado, foi destruída pela enchente. Era um alerta de que a água chegaria com força nas cidades a jusante.
Projetos de zoneamento e de gestão de risco estão parados
O Ministério Público Federal instaurou um inquérito civil para averiguar se houve negligência ou ausência de ações preventivas das autoridades responsáveis, como prefeituras, Defesa Civil e governo do Estado, no desastre no Vale do Taquari.
Um dos pontos questionados pela procuradora Flávia Rigo Nóbrega é a falta de implementação do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) do RS.
Os estudos iniciaram em 2012, e diagnósticos, oficinas e uma série de atividades foram finalizados em 2019. A Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) gastou US$ 8,7 milhões com consórcio formado pelas empresas Codex Remote, Acquaplan e Gitec para fazer o zoneamento. Mas até hoje o instrumento – que deveria dar suporte à gestão do território, incluindo fatores socioeconômicos, ambientais e físicos para a tomada de decisões sobre o uso da terra – nunca saiu da gaveta.
“Sem a implementação do ZEE e de planos de bacia hidrográfica, o Estado deixa de realizar a gestão ideal do seu território, inclusive para a prevenção de riscos de desastres”, afirma o presidente da Associação dos Servidores da Sema (Assema), Pablo Pereira.
A legislação federal determina que o ZEE trate da distribuição espacial das atividades econômicas, de acordo com as aptidões e fragilidades dos ecossistemas. “O zoneamento, se fosse implementado, estabeleceria restrições e alternativas de uso do solo e exploração de recursos naturais, principalmente em áreas de grande importância ecológica e de risco de desastres como deslizamentos e enchentes”, complementa.
Segundo Pereira, gestões passadas chegaram a elaborar várias outras políticas que poderiam ter sido implementadas para lidar com desastres, mas elas nunca avançaram.
É o caso da prometida Política Estadual de Gestão de Riscos de Desastres Naturais. Um anteprojeto de lei foi encomendado pelo governo de José Ivo Sartori (2015-2018) à empresa Codex, que chega a listar em seu site a elaboração da política como uma de suas realizações. Foram produzidas mesas temáticas e seminários com a participação de diversas instituições, mas o documento ficou cerca de dois anos na Casa Civil e nunca foi encaminhado para a Assembleia Legislativa para votação.
“A elaboração desse plano participativo de gestão de risco de desastres, com a formulação de política estadual e a previsão dos mecanismos institucionais para sua implementação foi finalizado em 2017 e desde então não mais avançou”, diz Pereira. Para a formulação dessa política estadual foram usados recursos do Banco Mundial no valor de pouco mais de R$ 670 mil, na época.
Na nota enviada à Pública (leia aqui a íntegra), a Secretaria de Comunicação disse que embora os estudos da Política de Gestão de Riscos e Desastres não tenham evoluído no Legislativo, “uma série de medidas e projetos já foram colocados em execução”. E que a Casa Civil solicitou à Secretaria de Meio Ambiente e à Defesa Civil uma avaliação das “ações desempenhadas e previstas” e a “oportunidade de construção de uma lei própria que possa trazer novos elementos, utilizando-se do anteprojeto de lei complementar”.
O estado conta com um Sistema Integrado de Monitoramento e Alerta (Sima), criado em 2022, e uma Sala de Situação – ferramentas mais ligadas à coordenação de ações durante emergências, mas não à prevenção ou adaptação. Segundo a secretaria, elas formam um “sistema eficaz de monitoramento e alertas para casos de eventos climáticos extremos considerados dentro da normalidade”. Mas que eventos como os que atingiram o Vale do Taquari foram de uma gravidade que “não tinha precedentes”.
Para situações como essas, a pasta diz que “o governo iniciou um mapeamento de novas tecnologias e sistemas utilizados em outros estados e países para verificar a viabilidade da implantação em território gaúcho o mais breve possível”.
Especialistas também apontam a falta de implantação por parte do governo, do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, previsto na Constituição do estado como responsável por fazer a gestão das águas. A legislação prevê a criação de comitês de gerenciamento de bacias hidrográficas e a implementação de planos de bacias.
Também chamados de “Parlamento das Águas”, os comitês são a instância democrática de decisão sobre o uso do recurso. Eles preveem a participação de todos os tipos de usuários de água de forma igualitária. Já o plano de bacia é um instrumento de gestão para que sejam tomadas medidas com relação à vazão e à qualidade dos recursos hídricos.
É também o instrumento que aponta quais obras e ações precisam ser feitas para o controle de um curso d’água. A elaboração do plano é baseada em um estudo complexo do território, que irá determinar a necessidade de se construir, por exemplo, diques, barragens, açudes e também de recuperar áreas degradadas, nascentes e áreas de preservação permanente (APPs). Das 25 bacias, porém, apenas nove têm seu plano.
“Não é o que impede a enchente, mas diminui bastante o seu impacto,” afirma o ecólogo Arno Kayser, fundador e ex-presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Comitesinos), o primeiro a ser criado no Brasil.
Segundo Kayser, tem ocorrido problemas de repasse do governo para os comitês. “Há comitês sem receber recursos do Estado há mais de oito anos. O último a receber já faz quatro”, complementa Júlio Salecker, vice-presidente do Comitê da Bacia do Taquari-Antas e presidente do Fórum dos Comitês do Rio Grande do Sul.
Perda de vegetação nativa facilita enchentes
Se por um lado faltam mecanismos de prevenção, por parte do governo, às ameaças representadas pelas mudanças climáticas, por outro, intensas modificações no uso do solo nos últimos anos fragilizam a capacidade da própria natureza de lidar com desastres.
Levantamento feito pelo MapBiomas a pedido da Pública mostra que houve uma perda de 20% na vegetação nativa na bacia do rio Taquari-Antas entre 1985 e 2022 – região de ocorrência do bioma Mata Atlântica. Cerca de 3.400 km2 (quase sete vezes a área da cidade de Porto Alegre) de florestas e campos nativos foram convertidos no período para outros usos, principalmente para agricultura. Em 1985, a cobertura total de vegetação nativa equivalia a 64% da bacia. No ano passado, já era de apenas 51%.
Um dos serviços ecossistêmicos prestados pela vegetação nativa é garantir uma maior infiltração da água no solo. Sem os campos naturais, banhados e florestas, quando vem uma chuva forte, a água escorre superficialmente, podendo provocar enchentes. “Em tempos de mudanças climáticas e de eventos extremos, deve-se valorizar ainda mais a vegetação nativa como efeito protetor no planejamento do uso e no ordenamento territorial da bacia”, afirma Eduardo Vélez, pesquisador do MapBiomas.
Elisete Maria de Freitas, professora da Universidade do Vale do Taquari (Univates), que atua no programa de Recomposição Florestal Obrigatória – um mecanismo de compensação ambiental previsto no licenciamento de grandes empreendimentos desde 2021 –, afirma que mesmo onde está ocorrendo recuperação da vegetação, principalmente da mata ciliar (na beira dos rios), o trabalho está sendo insuficiente para conter as cheias.
Ela se refere às faixas de proteção das margens dos corpos d’água que mudaram na reforma do Código Florestal, em 2012, caindo para cinco ou dez metros no caso da maior parte dos rios do estado. “Essa largura não adianta nada, todo trabalho de recuperação que fizemos foi por água abaixo. É necessário que a mata ciliar tenha uns 100 metros, como apontava antes o Código Florestal.” Segundo ela, nos locais onde a mata ciliar está mais larga, as chuvas na bacia Taquari-Antas não causaram destruição.
O estado também teve desmatamento no Pampa – o bioma perdeu 24% da vegetação nativa de 1985-2022, de acordo com o MapBiomas. Foi o segundo bioma a, proporcionalmente, mais perder vegetação no país no período, só atrás do Cerrado (25%). A área ocupada pela agropecuária no Pampa saltou de 29% para 44% no período.
E a perda da vegetação natural tende a piorar. No dia 18, pouco menos de duas semanas após o desastre no Vale do Taquari, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) aprovou que seja aumentada em quatro vezes a área da silvicultura no Pampa, bioma que tem a menor área protegida do País.
Hoje o plantio de pinus e eucalipto já ocupa 1 milhão de hectares no Estado. Com a mudança, uma área extra de até 3 milhões de hectares, ou 10% do território gaúcho, poderá ser ocupada pelas árvores exóticas.
A decisão do Consema – colegiado presidido pelo secretário adjunto de Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado, Marcelo Camardelli, que já foi representante da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) – se baseou em estudo encomendado por indústria de celulose, de acordo com reportagem do site Matinal.
Ambientalistas criticaram a medida. A troca da vegetação nativa por uma monocultura implica não só em perda da biodiversidade, como também pode piorar a situação hídrica. A árvore é conhecida por consumir muita água, gerando o que costuma ser chamado de “deserto verde”.
A Secretaria de Comunicação disse que “a atualização desse instrumento de gestão e uso do solo para essa atividade segue com os preceitos da preservação, aliados ao desenvolvimento econômico”.
Fonte: Robert Muracami, bbc.com, apublica.org, youtube.com/@uol